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A MORTE NUNCA É SÓ UM NÚMERO

Atualizado: 12 de fev. de 2020

Um relato, em texto e imagens, da fotógrafa mineira Isis Medeiros sobre a tragédia em Brumadinho


Texto e fotos por Isis Medeiros



No almoço de sexta-feira, 25 de janeiro, chega a notícia: “Barragem da Vale rompe na cidade de Brumadinho, em Minas Gerais.” Larguei o prato de lado, já com o coração acelerado, e fiquei aflita a espera de novas informações. Vai começar tudo de novo, pensei rápido.


Parece que foi ontem que a mesma notícia, então sobre o rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, Minas Gerais, chegava até mim. A mesma aflição de 3 anos atrás tomou conta novamente. Peguei um par de roupas, enchi a bolsa com alguns equipamentos e liguei para o Movimento de Atingidos por Barragens. Eu ainda não fazia ideia do que estava por vir, uma vez que a informação chegou incompleta, mas pedi logo uma vaga no carro, que já estava saindo de Belo Horizonte para a área.

Íamos tensos pela estrada, nervosos com as notícias que chegavam pelo rádio. A repórter, na rádio, informou que o refeitório, que ficava logo abaixo da barragem que se rompeu em Brumadinho, estava lotado na hora do rompimento. Os trabalhadores almoçavam naquele momento e, naquela área, provavelmente, não havia nenhum sobrevivente. O número: 250 pessoas! Já sabíamos, entretanto, que esse número poderia ser muito maior. As lembranças de Mariana vinham à tona incessantemente. Já conhecíamos bem o cenário de desolação que estava por vir, e que seria ainda maior com essa tragédia humana.


Foi com esse aperto no coração que chegamos na Comunidade Córrego do Feijão, pequeno distrito de Brumadinho, primeiro local atingido pela destruição do rejeito. A imprensa já havia chegado, e familiares desesperados vinham em busca de notícias sobre funcionários da mineradora Vale e de possíveis sobreviventes do crime ou ligavam desesperados para os companheiros de escritório em busca de alguma informação. Nada. Nenhum telefone atendia. Ninguém sabia mais nada. Do lado de fora, a polícia militar cercava o Centro Comunitário. Outros funcionários e chefes uniformizados da empresa se reuniam com representantes do Corpo de Bombeiros do lado de dentro. Ninguém podia sequer se aproximar. A polícia se encarregou de blindar as entradas do salão e impedir qualquer aproximação. Os carros do Corpo de Bombeiros iam chegando e enfileirando os brigadistas para a missão. “Levem pás e enxadas”, deu ordem o capitão. E ali começariam os trabalhos sem fim em busca das pessoas atingidas.



Naquela manhã de sexta-feira, não houve sirene, nada disparou. Ao chegar na cena do crime, muita lama e silêncio. O rejeito da mineradora ia se assentando nas encostas, borbulhava na superfície e escorria vale abaixo em direção ao Rio Paraopeba. Os helicópteros barulhentos começavam as buscas, iam e vinham trazendo mais informações sobre a área devastada. Nos olhares de quem se aproximava havia desespero e inquietação, e moradores da comunidade já esboçavam irritação com a empresa. Para algumas pessoas, aquele cenário desolador parecia premeditado. Alguns moradores, ao se lembrarem do curso de segurança e evacuação em caso de rompimento, que a empresa ofereceu meses atrás, se enfureciam com essa lembrança. “Sim! A Vale matou meu pai”, gritava uma jovem recém chegada no local do crime.





Durante os dias seguintes, quem chegava na comunidade se assustava ao ver aquela cena apocalíptica e o som ensurdecedor de helicópteros trabalhando dia e noite em busca de uma lista extensa de pessoas que iam sendo somadas, de tempos em tempos, e anunciadas por representantes do Corpo de Bombeiros. Seiscentos nomes de pessoas entre as já encontradas, as desaparecidas e as já resgatadas sem vida, listavam as paredes do Centro Comunitário que dia e noite recebia familiares desinformados. Os corpos desaparecidos iam sendo encontrados sem vida e preenchiam as lacunas dos óbitos confirmados. Sacos pretos chegavam carregados a todo instante pelo campo. Antônio, Joana, Maria, José, Augusto, todos mortos.




Fotógrafos e cinegrafistas de todo Brasil e do mundo iam chegando e registravam a mesma cena: resgate de corpos e animais em meio ao caos. Durante os 20 primeiros dias após a tragédia, a conclusão é de que a tristeza e a revolta desse povo não puderam ser captadas por nenhuma câmera que passou por aqui. A violência é geológica, geográfica, econômica, social, psicológica e política. Que modelo de desenvolvimento econômico sustenta e permite exploração e crimes dessa magnitude? Assim como em Mariana, o retrato e a dor dessa gente serão sempre marcados pela lama da impunidade e do descaso.




A morte nunca é só um número. Rio Doce, Paraopeba, São Francisco. Comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, urbanas. Tanta gente no meio desse caminho, que 600 corpos não constituem um número abstrato. Nossas bacias não fazem fronteira e a nossa soberania não tem preço. São sustento, histórias, alimento, memórias e vidas. O crime ambiental também é assassinato.





Em cada pessoa, uma imensurável tristeza para contar, além de raiva e indignação. Vidas rompidas pela ganância. Os dez bilhões de lucro dessa multinacional não fazem diferença para quem foi atingido ou perdeu um pai, um irmão ou uma filha, ou para quem viu a casa em escombros ou nem teve oportunidade de ver nada, pois foi apunhalado pelas costas e misturado àquela avalanche de rejeito. Para essa gente que ficou viva, há a esperança de ainda encontrar a pessoa querida e poder enterrá-la com um mínimo de dignidade. Nem isso a empresa e o Estado prometem.



De acordo a Agência Nacional de Mineração, os fiscais responsáveis pela regulamentação do funcionamento não apareciam na Barragem de Brumadinho desde 2016. No mesmo dia do rompimento, a Vale se reunia com o sindicato dos trabalhadores para uma negociação da jornada de trabalho que iria de 8h por dia, para 12h.





A privatização está por trás do rompimento dessas barragens. A Mineração mata e o Estado enterra. Os culpados são anônimos e a justiça tem lado. Em Mariana, as empresas estão impunes e dominam todos os processos pós crime. As mineradoras atuam com proteção e benção do Estado, o clima é de dominação em todos os processos, desde o cadastro das pessoas desaparecidas e do controle das doações vindas de todo Brasil, até os acordos de gabinete, sem a participação dos atingidos diretos, das entidades sindicais e das organizações civis. Em Mariana, três anos depois, o cenário ainda é um caos. O Estado vendido não tem domínio sobre os processos. Há quem ainda relativize os fatos acreditando que a justiça será feita dessa vez, que as medidas estão realmente sendo tomadas e que os responsáveis ficarão presos. Mero engano. Mais uma vez, a criminosa cuida da cena do crime e o Estado se acovarda.



Vinte dias após o massacre provocado pela mineradora em Brumadinho, entre as principais reclamações de moradores está a falta de informação sobre as buscas das vítimas, que não chega às pousadas onde os desalojados estão sendo abrigados. Muitos reclamam do distanciamento das famílias de Córrego do Feijão da comunidade, rompendo os laços afetivos que ali existiam. Outros reclamam do abuso de privacidade, com a imprensa batendo em suas portas a todo momento, além da dificuldade de adaptação ao novo local. As famílias ainda cobram agilidade dos veículos que fazem o transporte até Córrego do Feijão. Muitas dessas pessoas atingidas e dos familiares das vítimas fazem questão de visitar todos os dias a área atingida em busca de informações sobre os desaparecidos. A vida por ali parou, o vilarejo que antes respirava, se transformou em um vale de lágrimas. Os moradores dizem nem saber o dia da semana ou do mês. Não há nada que faça esse povo se levantar e acreditar em dias melhores enquanto a justiça falha e tarda.



O Movimento de Atingidos por Barragens defende que o processo de reparação, construído de forma negligente logo após o crime em Mariana, não pode se repetir em Brumadinho. Para o movimento, deixar a reparação nas mãos dos próprios criminosos é um erro incomensurável, que será responsável por futuras violações e crimes que demandarão mais esforços para serem sanados. O ideal é que o processo de reparação seja construído coletivamente, com participação popular e assessorias técnicas independentes, que respondam às verdadeiras necessidades da população. O povo deve, então, ser o protagonista no reparo de suas próprias vidas, pois somente quem conhece a realidade local, os modos de vida impactados e o que precisa e deve ser reparado é a própria população.

Lugares tranqüilos, de gente simples e café no fim da tarde, um paraíso de serras já fatiadas pela mineração, onde a vida e a calmaria mineira que tanto nos marca, viram ferida, mais uma vez, pela irresponsabilidade da Vale.



Para saber mais sobre o trabalho de Isis Medeiros: https://www.instagram.com/isismedeiros_foto/


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