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DOM DE CURA E PAJELANÇA

Conhecimentos ancestrais contra a pandemia



Texto: Tainá Aragão

Fotos: Leonardo Milano



A série de reportagem documental “Covid-19: dom de cura e pajelança”revela como o conhecimento dos povos tradicionais indígenas da região do baixo Tapajós, no estado do Pará, foram utilizados para apoiar no tratamento da Covid-19.

Apesar da constante inviabilização e preconceito sobre a pajelança e o conhecimento medicinal indígena, muitos pajés estiveram na linha de frente durante os momentos mais críticos do combate à Covid-19, e com suas ervas e cosmologias espirituais, salvam vidas.

Luiza, Nato, Fabiana e Suzete são os protagonistas dessa história e através da experiência desses quatro pajés, detentores do conhecimento tradicional de cura, é possível compreender a importância do conhecimento tradicional e da floresta em pé para os povos indígenas, em um dos cenários mais desafiadores do século: a pandemia.

O projeto conta como a pajelança continua sendo um conhecimento essencial para o tratamento das aldeias que são afetadas pela desassistência da saúde formal no Brasil. Além disso, mostra a importância da proteção ambiental, da tradição, do território e memórias dos usos das ervas e plantas nativas da Amazônia para a cura de doenças que afetam o mundo contemporâneo.

A série foi produzida pela cineasta indígena Priscila Tapajowara (vídeos), pela jornalista socioambiental Tainá Aragão (textos) e pelo fotógrafo documental Leonardo Milano (fotos), com apoio da ONG Amazon Watch, em parceria com a Mídia Ninja, que construiu o site do projeto. Contou também com a parceria da Mídia Índia e dos Jornalistas Livres.




Pajé Luíza Tupinambá: o canto final


Saudade na Aldeia Marabaixo

O que silencia quando uma Pajé morre? Mais do que um/a líder espiritual, a/o Pajé para muitas aldeias/comunidades indígenas do Brasil é sinônimo da única oportunidade de cura para as enfermidades físicas e espirituais. O desaparecimento dessa entidade pode causar um desequilíbrio avassalador, o vazio, o silêncio, a morte. Esse é o sentimento que margeia a Aldeia Marabaixo, do povo Tupinambá, localizada em uma pequena enseada na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, no oeste do Pará, que ainda vive o luto da Pajé Luiza Tupinambá.

Em março de 2021, Marabaixo, com pouco mais de 50 famílias, viu desfalecer por covid-19, sem nenhuma possibilidade de acesso à cura, a anciã e pajé da aldeia. Luiza Tupinambá, 83 anos, era uma importante líder para o seu povo. Hoje o país se encontra na triste cifra dos mais de 600 mil mortos e 1.071 indígenas mortos por covid-19, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).


Vítima da desassistência de saúde do atual governo, Luiza faleceu em sua casa, logo após voltar de Santarém, cidade mais próxima da aldeia, com todos os sintomas da doença até então desconhecida. Ela ia uma vez por mês à cidade para ter acesso ao auxílio que recebia do INSS.


“Ela sentiu os sintomas e ainda não tinham vindo nenhuma equipe pra fazer teste nas comunidades e aldeias. Só passava no rádio dizendo ‘qual’ eram os sintomas da covid e nós ‘suspeitemo’ que poderia ser a covid”, explica o Cacique da Aldeia Marabaixo, Genildo Tupinambá.”


Foi no lapso de apenas uma semana que Luiza faleceu sem receber qualquer atenção médica básica. Segundo o Cacique Genildo, quando a Pajé começou a apresentar os primeiros sintomas, os leitos hospitalares estavam ocupados em Santarém, e ela resolveu usar todos os seus conhecimentos para se curar em casa. Luiza fez o remédio natural com base em uma planta nativa, o Kumaru, ensinou aos seus e logo após não resistiu ao vírus. Na mesma semana da sua morte, toda a comunidade se contaminou. Por ironia do destino, até hoje, a Pajé foi o único óbito da sua aldeia.


“Todo mundo aqui foi abalado, todos caíram (foram contaminados) e foi uma situação difícil pra gente enfrentar essa doença justamente em relação de socorro. Aí que ‘entrou’ as ervas medicinais que os nossos pajés ensinaram pra nós, justamente a nossa pajé Luiza, que foi vítima, ensinou pra nós usar o remédio”, afirma o Cacique sobre o uso da medicina tradicional para auxiliar no tratamento da covid-19.



Cacique Genildo

O cocar deixado por Luíza para sua amiga e substituta, Pajé Iza

A morada dos encantados



Pajé Nato Tupinambá: ancestralidade e território de cura


Pajé Nato Tupinambá

O pajé Nato Tupinambá vive em Alter do Chão, região periurbana de Santarém, a segunda maior cidade do Estado do Pará, às margens do Baixo Rio Tapajós. A zona turística, conhecida internacionalmente como “Caribe Brasileiro”, é uma sobreposição à Aldeia indígena do povo Borari, que ainda não possui o território demarcado.


Apesar do movimento de luta pelo reconhecimento étnico e regularização fundiária do território ter iniciado oficialmente no ano de 2003, somente em 2008 a Fundação Nacional do Índio (Funai) criou um Grupo de Trabalho para a realização dos estudos de identificação e delimitação da terra indígena Borari. Desde então, o processo de demarcação segue indefinido. Por outro lado, a população originária de Alter do Chão está em um processo de retomada da identidade e preserva formas de organização e relação social das sociedades indígenas.


A pajelança é um símbolo dessa expressão étnica que permanece viva entre os indígenas Borari.

O bairro Jacundá, localizado em Alter do Chão, é fruto de uma mobilização em torno da retomada do território Borari, uma vez que, no início dos anos 2000, houve uma tentativa de grilagem massiva da terra pelo empresário Rui Nelson, que loteou o território e o ocupou com o respaldo da Prefeitura. Após a luta para a retirada do grileiro da região, a área de aproximadamente 48.000 metros quadrados foi loteada pelas lideranças indígenas e dividida entre os Borari que participaram ativamente da ação. Um total de 80 lotes foi distribuído entre as famílias, e o restante da área foi destinado para construção de estruturas comunitárias.

É nesse bairro, Jacundá, que o pajé Nato Tupinambá possui sua casa de cura e atende pessoas indígenas e não-indígenas dos municípios nos arredores de Santarém, principalmente Aveiro e Belterra. Nato explica que “não existe pajé sem o território”, por isso a luta pelo direito à terra é fundamental para a manutenção da cultura de cura e sobrevivência dos indígenas.



Nato faz preparos para fortalecer o sistema imune das crianças de sua aldeia, no bairro do Jacundá

O Pajé Nato Tupinambá benzendo uma indígena

A medicina da floresta


Pajé Fabiana Borari: entre o conhecimento científico e a medicina ancestral


De segunda à sexta-feira, pela manhã, Fabiana pega dois ônibus para se deslocar até o trabalho, e mais dois ônibus do trabalho para casa

Viver no trânsito entre a tradição da pajelança e a prática de agente de saúde indígena. Essa é a experiência real de Fabiana Borari, que dedica diariamente sua rotina para possibilitar acesso à saúde aos seus parentes de 13 etnias do Baixo Rio Tapajós, no estado do Pará. Há anos, a Borari se divide entre suas obrigações laborais, do escritório e do campo, e espirituais – das medicinas da floresta e tradição geracional. A sua pajelança é praticada apenas em seu núcleo familiar, mas a dedicação à saúde indígena faz parte da sua existência de forma integral.


Por portar o conhecimento tradicional das ervas medicinais desde nascença e também por conhecer de dentro o funcionamento da Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, Fabiana entende o conceito de saúde de forma mais ampla do que a mera aplicação de uma atenção externa às aldeias. “Saúde indígena pra mim é usar o nosso conhecimento, a nossa sabedoria tradicional, usar os recursos da natureza em nosso benefício. São esses conhecimentos que se passam de geração para geração: pai pra filho, de avô pra neto. Isso pra mim é saúde indígena”, explica.


O uso do conhecimento tradicional para garantir a saúde integra a Política Nacional de Atenção aos Povos Indígenas há 22 anos no Brasil. Segundo a política implementada pelo Ministério da Saúde, a adoção de um modelo complementar e diferenciado é voltada para “proteção, promoção e recuperação da saúde” e deve garantir aos indígenas o exercício de sua cidadania nesse campo.


Para isso, assegurar o direito à saúde às populações tradicionais se traduz em considerar as especificidades étnicas e culturais e os direitos territoriais dos povos indígenas. Mas será que os conhecimentos tradicionais são considerados na prática?

“Não podemos desvalorizar o conhecimento científico daquele profissional que passou seis anos numa universidade, mas também esse profissional, que estudou a parte científica, não desvalorizar o conhecimento tradicional daquele, vem ali desde berço, já nasceu com aquilo, já nasceu com esses conhecimentos”, enfatiza Fabiana.



Fabiana chega ao DSEI em Santarém, após quase duas horas em trânsito

Fabiana observa frasco com óleo de andiroba, que tem diversas propriedades, como cicatrizante e antiinflamatório

Fabiana amamenta sua filha mais nova


Pajé Suzete Kumaruara: do cumaru, kumaruara, um povo com nome de cura


Pajé Suzete evoca os espíritos enquanto faz um dos seus diversos preparos medicinais

O Cumaru é o fruto que nasce da flor da árvore tropical Cumarueira, típica em toda a região norte da América do Sul – incluindo os Estados brasileiros do Amazonas e do Pará. Para fora da Amazônia, é reconhecido como uma das especiarias mais requintadas e exóticas da culinária gourmet, substituindo outras, como canela ou cravo. Em alguns países, o Cumaru é visto como veneno: os EUA, por exemplo, proibiram o seu consumo desde 1954, segundo a BBC. Mas, dentro da Amazônia, é planta sagrada, utilizada para o tratamento de doenças respiratórias, entre outras coisas.


Kumaruara advém de Cumaru e é o nome de um dos 13 povos indígenas que habitam a região do Baixo-Tapajós, oeste do Pará. A aldeia indígena Solimões, que fica na margem direita do rio Tapajós, é habitada por esse povo que reconhece o Cumaru como planta detentora da essência de identidade e cura. Agora, durante a pandemia, foi muito utilizada para auxiliar no tratamento da Covid-19, [para contribuir] contribuindo na cura de muitos indígenas kumaruaras contaminados pelo vírus. Suzete, fez seu primeiro parto aos 11 anos, contra a vontade da mãe. A pajé foi guiada, no parto de uma parenta, pelos espíritos da floresta. Um chamado impossível de recusar…


“Nossos antigos, nossos antepassados, falavam e falam até agora que, aqui dentro do nosso território, havia muito essa madeira aqui chamado Cumaru, então, os nossos antigos colocaram o nome da nossa Etnia de Kumaruara. Agora, nós combatemos muito a Covid com o Cumaru, todas as aldeias trabalharam muito com essa medicina. Parece que nossos antepassados sabiam dar nome para a cura”, explicou Leno Kumaruara, cacique da Aldeia Solimões.


A Aldeia Solimões, a 2 horas de Santarém, segunda maior cidade do Pará, está no processo, desde a década passada, de reconhecimento do território tradicionalmente ocupado. A Fundação Nacional do Índio ainda não demarcou essa área de ocupação tradicional indígena que sobrepõe o interior da Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns. Essa sobreposição gera conflitos e também omissão e desassistência aos povos indígenas. Os descendentes dos guerreiros da Cabanagem hoje sofrem pela falta de serviços de atenção básica, como de saúde e educação, e pela invisibilização da sua condição étnica.


Conforme o relatório “O Brasil com baixa imunidade – Balanço do Orçamento Geral da União 2019”, publicado pelo INESC, instituto especializado em orçamento público e Direitos Humanos no Brasil, a política de saúde indígena foi um capítulo significativo na ofensiva aos direitos não só do povo Kumaruara, mas de todos os povos indígenas do Brasil.



É do quintal de casa que a experiente pajé Suzete extrai as folhas, cascas, frutos e sementes que são utilizados para fazer os remédios que ajudam seu povo

A força dos encantados esteve desde muito cedo com a Pajé Suzete

Aldeia Solimões, situada na margem direita do Baixo-Tapajós




Para ver a reportagem completa acesse: https://midianinja.org/cura-e-pajelanca/


Para saber mais sobre o trabalho de Priscila Tapajowara, Tainá Aragão e Leonardo Milano:

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